2009/01/23

SERÁ POSSIVEL

QUE TAL ME TENHA ACONTECIDO?
( falta adicionar fotos)

Mais uma viagem mais uma corrida a Marrocos, efectuada há já alguns anos atrás, na período do Ramadão e num dos meus primeiros trabalhos para Ideias Nómadas.

Não contei já esta estória por ficar bastante mal no seu términus e, assim, as vossas opiniões em relação à minha pessoa irem ainda piorar mais.
Vão ver que o vosso comentário final será:
-Mas que nojo.

ESTÓRIA

No Sahara , claro, com um grupo de jipes, partimos de manhã num dia de Sol e calor, algo habitual nos grandes e portentosos desertos.

Entre nós ia um senhor Engenheiro Mecânico que, não sei se por cansaço de muitos quilómetros já percorridos ou se pela razão que de facto invocou, de os amortecedores terem perdido qualidade de desempenho tal o aquecimento que levaram, teve um “desaguisado” com a pista (e porque não também) devido a alguma velocidade a que seguia e, resultado, o jipe que conduzia foi abraçar um valente pedregulho.

O médico foi chamado por rádio com urgência, mas felizmente só o carro necessitava de cuidados, pois tinha a frente um pouco destruída.
Esta foi de facto a nossa primeira impressão, pois ao retirar o jipe verificámos muito mais problemas mecânicos, sendo um deles a “fractura” do cárter que já tinha derramado para a pedra do meu querido deserto um líquido, precioso para o carro, mas péssimo para o ambiente que, como perfeito que é, de nada precisa para lubrificação, pois tudo corre nele bem, excepto o que o homem lhe faz, mas é tal a vastidão do Sahara que só junto aos aglomerados populacionais isso mais se nota.

Os desertos “heureusement” (gosto desta palavra) são dos poucos sítios da terra onde a pureza da natureza se mantém intacta há seculum seculorum.
Será por isso que algumas pessoas ainda andam em camelos?

Resultado: Aquele jipe, para sair, dali só rebocado.
Jipes e cabos são coisas que não faltam nunca.

Almoço é que por vezes não há.

Retirar o carro daquela situação e o trajecto efectuado a rebocá-lo, de lento que foi, atirou o nosso almoço para a hora de jantar.

Neste demorado e aborrecido resto de trajecto, seguia eu a fechar o grupo com muita fome e sono, que momentaneamente, a fome, o acidente me tinha tirado, mas que logo recuperei tal a pasmaceira da lentidão daquela progressão, quando ao longe surge uma caravana de camelos que vinha na nossa direcção.

Preparei logo a máquina fotográfica mas, com o aproximar da caravana, verifiquei tratar-se de camelos com turistas, e como me cheirou a artificialidade guardei a máquina.
Mas ao mesmo tempo pensei nas pessoas que ali vinham e, para não os incomodar, parei o meu jipe para evitar barulho e pó e também para não assustar os camelos, pois o meu escape estava nas horas da amargura, ou melhor, a entregar a alma ao criador.
A própria panela do escape já me fazia companhia no interior do jipe.

Fiquei olhando, era difícil distinguir os berberes dos estrangeiros e não nego que os meus olhares procuravam também alguma bonita turista e de preferência descascada, mas nem nada...
Os turistas, como o Sol obriga, tinham-se fornecido e vestido a rigor de roupa árabe com “jhilabas” e turbantes que lhe tapavam toda a cabeça e corpo, usando óculos escuros, o que nem permitiam ver se os olhos delas eram ou não bonitos...
Mas só com atenção e com dificuldade pela forma do corpo se distinguiam os homens das mulheres, pois as turistas preferem-se trajar com a roupa árabe masculina.

Pensei:
Raios partam isto, nem aqui há nada de interesse, mas mesmo assim como não havia mais nada para ver continuava olhando.

De repente, e ao meu lado, um “caravaneiro” de forma totalmente desajeitada, tenta parar o seu camelo, o que acaba por conseguir, quase ameaçando chocar com o meu carro,

Olha para mim e a diz:
- Olha o Gaspar.

Fiquei atónito, estupefacto e de certeza com ar espantado e boquiaberto.
Será que a fome dá “audiões” tal como a sede dá visões .
Meti os dedos nos ouvidos para ter a certeza de que ali, no fim do mundo, alguém que não era do meu grupo e que vinha de algures e de camelo me estava a chamar.
Seria a fome a fazer-me esta confusão.
Maluco penso ainda não estar.
Será um marroquino que me conhece?
Mas como pode um marroquino dizer em bom português Gaspar? Além disso eles chamam-me “dôtôr”...

O mistério logo se desvendaria quando a personagem vestida de árabe desenrola o turbante que lhe ocultava a cara e com grande espanto meu, ali aparece à minha frente um colega de profissão e de especialidade que trabalha no Hospital do Barreiro.
Não houve tempo para conversas pois a caravana continuou a andar.
Disse-me só que se tinha metido naquilo durante uma semana, que a esposa estava com ele e ainda conseguiu dizer-me:
- Para o ano venho contigo, mas de jipe.

Bolas, desde o acidente o nosso trajecto tinha sido um marasmo e agora que havia ali uma fonte de interesse já se ia embora, deixando-me com tantas perguntas para fazer.
Vens de onde e para onde vais?
Como te meteste nisso?
Estás a gostar ou estás arrependido?
A ideia foi tua ou da tua esposa?
Há mais portugueses?
Etc.Etc.
Nada.

Fiquei cheio de curiosidade e sem ter respostas ás minhas interpelações mentais.
Mas que diabo aquilo das caravanas pensava que era uma pasmaceira, afinal até pode ser “stressante” pois nem tempo há para parar e falar.

Mas a verdade é que de certeza ele tinha almoçado, e eu... nada.

Para o ano quer vir comigo de jipe, bom penso que será bem melhor, pode tomar banho, ao fim da tarde, beber umas “bejecas” embora caras, mas valem o dinheiro que eles pedem por se tratar de fruta proibida e poderá até dormir num bom hotel.
Até hoje ainda espero o oferecimento.
Teria ficado farto do deserto?
Uma semana de camelo…
Teria sido Sol e calor a mais.
Teriam sido os amortecedores do camelo que são “lixados”.
Já andei de camelo a subir e descer dunas com a finalidade de fotografar da duna mais alta o pôr do Sol e andar naquilo é tramado, imagino uma semana.
Já sei o que foi, é o tal feitiozinho das mulheres, ele levou a esposa e ela nunca mais o vai perdoar e a partir daí as belezas do deserto só na TV.

Prossegui na minha “Jipó-caravana” ainda incrédulo.
Este mundo até parece pequeno.

Eram já cinco da tarde e eu não me tinha prevenido com as minhas habituais tâmaras ou com os bolinhos secos ou até com as bolachinhas de aveia ou barras energéticas, tinha latinhas de atum e cebolinhas lá atrás, mas parar para comer parecia mal, por isso tinha de continuar o Ramadão e pensar em outras coisas.
Pensar em comida é que não.

Se eu tivesse dito ao meu colega que o levava para trás qual a decisão dele?
O trajecto que eu faço numa manhã vai ele fazer numa semana.
Ter-se ia prevenido com anti-inflamatório para as dores das costas, ou antes, de todo o corpinho.
Quando têm vontades fisiológicas não se podem esconder atrás dos carros como nós.
Deve ser mulheres para um lado homens para outro e de costas viradas, e se algum marroquino vir alguma coisa está tramado pois é Ramadão e será pecado.
Aquilo sim, poderá ser uma aventura.
Será que um dia eu iria fazer o mesmo?

Dormir e passar a tarde num oásis à sombra das palmeiras é algo que me agrada mesmo sem “bejecas”.

Conheço o trajecto das caravanas de camelos que atravessavam o Sahara para efectuar trocas comerciais, trocas essas que principiaram com a simples permuta de sal por ouro e sinto-me atraído a fazer esses percursos, mas de jipe ou, melhor ainda, em camião 4X4 transformado em autocaravana.

Isso sim é que seria uma boa vida para um tendencial nómada, como eu.


A SOPINHA - HARIRA


Eram cerca das 6 da tarde e aproximávamo-nos de , onde iríamos deixar o jipe acidentado e pensei:
O Hotel ainda é longe, era aqui que estava previsto almoçar, podíamos parar e comer qualquer coisa.
O chefe, que faz Ramadão com facilidade, lá teve um pensamento parecido com o meu e disse pelo rádio:
“Calha bem chegar a esta hora” pois vamos ter a possibilidade de ouvir o tiro de canhão que é disparado todos os dias no período do Ramadão quando o Sol se põe e temos a oportunidade de podermos comer uma sopa de harira, que é a sopa tradicional desta época religiosa.

Sopa de harira, eu adoro essa sopa e com a fome que tinha só já pensava na sopinha.

5, 4.3, 2, 1, 0, quilómetros, paramos os jipes junto a um grande aglomerado de pessoas tipo feira marroquina, tento, ainda dentro do carro, cheirar a sopinha, saio, ligo o azimute para a tenda mais próxima.

Para passar a multidão encosto-me e empurro com o corpo pessoas e pessoas fazendo gincana entre elas e com custo lá me aproximo da tábua que serve de balcão, consigo chegar, mas só lá caibo de lado, mais um último esforço no empurra a dois marroquinos que me ladeavam, estou de frente para o “cozinheiro” e grito “Harira”.

O “estalajadeiro” vem direito ao marroquino que estava ao meu lado e que tinha acabado o Ramadão um pouco mais cedo que eu, tira-lhe a malga onde ele tinha comido, passa-a uma só uma vez por um alguidar, com água muito suja, num gesto rápido de meio segundo e imediatamente e sem a limpar mete a malga dentro de uma panela de sopa para a encher da dita, mão e tudo, mas com a prática só molhou os dedinhos e põe-ma à minha frente.

Estava cheio de fome e agora faziam-me aquela porcaria.

O que faço com a sopa, mando-a embora?
Ao dono da tasca vai-lhe parecer mal.
Lá seria mais uma razão para os árabes dizerem mal dos ocidentais.

De repente lembrei-me:
E a colher?

Pois ainda foi mais rápido.
É também tirada de uma malga vazia acabada de esvaziar e num décimo de segundo passa pelo único alguidar com a única água encardida que havia naquela tenda e de uma só vez, tal como a malga.

Este rápido gesto deve ser para que a água para a lavar não fique suja e foi tal a agilidade do gesto que antes que eu conseguisse gritar para tentar outra solução, eis que a colher é metida dentro da minha harira.

Que fazer?
A colher há uns instantes estava na boca de um berbere e agora está dentro da minha sopinha.
Sem a colher se calhar comia a sopa, mas com a colher?

Satisfazer as nossas necessidades fisiológicas é a nossa finalidade principal, a minha fome era muita, o pensamento na sopa tinha-a ainda aumentado...
Sim, não, não, sim, enchi o peito de ar, coloquei o pensamento só na sopa e procurei nem cogitar na porcaria que aquilo era e consegui, com muita dificuldade, meter a colher à boca - é que nem o braço ajudava e sentia-me todo arrepiado.

Garanto-vos que só as três ou quatro primeiras colheradas é que custaram, e é difícil explicar a sensação tida de malquerença e aversão a uma situação única ao lutar entre a vontade, o instinto e a razão e ainda hoje, só de pensar nisso, me arrepelo e arrepio, mas depois, a sopa e a colher eram todas minhas.

Não sei se fui só eu do grupo a quem isto aconteceu, mas uma coisa é certa: até hoje ainda nunca ouvi qualquer comentário a tal repasto.

Envergonho-me de vos dizer que a sopa estava óptima e não sei se voltarei a comer uma harira tão boa, mas predigo nunca mais fazer isto (embora pense que se vier a passar dois ou três dias de fome, terei que reconsiderar o atrás descrito. Que porco.)

Nota: Já sou possuidor de um utensílio que uso à cintura que faz de colher, garfo e faca e nunca mais me vou esquecer da caixinha com muita comidinha junto à alavanca das mudanças da “minha jipose”.