2007/03/25

Lei de Murphy e mosca 2


Como vos comecei já a contar, na primeira expedição à Mauritânia levámos poucos clientes com o intuito de ensaiarmos como iria funcionar a modalidade de aluguer de jipes, aproveitando a rápida deslocação que o transporte em avião nos proporcionaria permitindo assim alcançar aquele paraíso de "todo o terreno" sem ter de percorrer aquela estada do Sahara Ocidental,que embora bonita se torna monótoma devido à sua extenção.

Como esperávamos, deparámos com problemas nos carros alugados mas não era nossa expectativa que fossem tantos e tão variados, de tal forma que só esta expedição dá para escrever um romance aparentemente de ficção, mostrando apenas a realidade daqueles carros africanos.

Na Mauritânia só se alugam carros com condutor. Foi, pois, com desconfiança que concordaram, e pela primeira vez, em ceder carros para serem dirigidos por clientes, pesando para isso ser Ideias Nómadas uma empresa conhecida e com um
vasto curriculum no TT africano.

Mas quando lá chegámos, ao contrário do acordado, deram-nos os piores carros que possuíam, provavelmente com o medo que teriam de, no final da expedição, serem entregues carros inicialmente bons mas nas idênticas condições aos que verdadeiramente nos foram confiados.

Esta narrativa começa no dia anterior ao acontecimento que vai originar a estória abaixo descrita, com a saída de Atar em três pickups Toyota, uma delas já substituta da minha viatura anterior pois, como já vos contei em estória precedente, no dia anterior eu tinha transformado um direito veio de transmissão da minha Toyota num contorcido tubo em forma de oito o que, para efeitos de progressão, não teve muitas consequências, pois aquela viatura vinha progressivamente mostrando sintomatologia de astenia e já lhe tinha feito um diagnóstico de falência em mais ou menos quilómetros.

Saímos, portanto, de Atar para alcançar Ouadane, seguindo depois para uma zona desértica de pistas de areia revolta com numerosas dunas que nos levaria a Chingueti e continuando, depois, para chegarmos finalmente ao nosso destino-partida, Atar.

Seria um dia de percurso curto em que faríamos um trajecto turístico, excepção feita à incursão dunar de uma beleza vinda da mescla de areia dourada com múltiplas disformes ondulações de infinita lonjura.

Começámos o trajecto pelo
mais largo e longo estradão onde alguma vez já estive,
de um piso de lisura irrepreensível, tendo tudo corrido bem até ao seu final.

Tudo corrido bem não, pois ocupando a mesma viatura viajava comigo um casal, o que me não permitiu varrer algumas das soberbas curvas daquele majestoso estradão, principalmente uma delas já perto do seu término, mas que ficaram gravadas na minha memória, podendo já várias vezes, posteriormente, ter lá experimentado a trajectória certa para que no máximo de velocidade as possa fazer.

O perigo é quase nulo pois em caso de impossibilidade dos carros se segurarem na trajectória da curva é só endireitar o volante seguir em frente, uma vez que é deserto, não há pedras nem árvores, portanto um bom sítio para quem tem a noção de como evitar que um jipe "capote", de poder ali experimentar a sensação dos pilotos do mundial de ralis em idênticas curvas.

Não posso nunca deixar de recordar que uma vez, levando ao meu lado o guia de uma outra expedição por nós posteriormente efectuada, na tal curva, após a ter concluído, ele ter batido as palmas de contentamento pela sensação obtida, palmas essas batidas de certeza a um ritmo inferior ao do meu ritmo cardíaco pois dessa vez exagerei na velocidade e, como resolvi não fazer redução na caixa de velocidades, foi em quinta velocidade que vinha e foi em quinta que a efectuei, obtendo assim o máximo da derrapagem mas o mínimo da tracção para que, com mais segurança, pudesse sair daquela situação.

Já tentei posteriormente repetir o feito, mas a coragem falta pela forte lembrança da assustadora sensação experimentada, apesar de ter a noção de ter conseguido efectuar com a máxima perfeição a dita curva.

Um homossexual assumido da minha terra natal tinha uma frase, dita com outros desígnios, mas que aqui se pode aplicar tal a sensação obtida:

Um misto de dor (aqui mental e não física) e de prazer, mas não experimentem, não experimentem....

Tudo a correr bem, portanto, até entrarmos na pista arenosa que nos iria levar a Ouadane, o tal entreposto comercial português já descrito numa estória anterior.

A partir daí a Toyota dos cozinheiros parava de alguns em alguns quilómetros devido a aquecimento, esperávamos um pouco e lá prosseguíamos, mas passado pouco tempo já não era só aquela avaria, já havia outra que se manifestava
tirando a potência do motor e as paragens tornaram-se mais frequentes e demoradas, pois além de esperar pelo arrefecimento da carrinha tinha de se retirar o filtro de gasóleo para se expurgar alguma sujidade que entupia esse
filtro.

Bom, alguma sujidade seria aquilo que se escreveria noutras circunstâncias, mas a realidade é que o que saía daquele filtro era um líquido completamente lamacento e pantanoso longe de parecer combustível.

Aproveitava estas paragens repetitivas para a pé ir admirando as dunas, as contra dunas, as várias colorações da areia, a tirar uma foto aqui outra ali, a procurar fósseis, pedras e a começar a admirar as diferentes formas esculturais que tomam as diferentes acácias consoante os ventos que as amoldam durante o seu crescimento.

Tornei-me nesse dia um coleccionador de fotografias de árvores com formas ensoberbecidas e contorcidas, que só grandes escultores conseguiriam ter consumado, aqui neste caso o excelente artífice, a nossa querida mãe natureza,
ou melhor, o modelador eólico.

Apesar do tempo perdido conseguimos ainda almoçar junto às ruínas de Ouadane e visitar aquela antiga cidade e antigo entreposto comercial de Portugal.

Os problemas mecânicos e tentativas de resolução continuaram tarde adiante, agora também já com falta de força e aquecimento da minha pickup, o que não nos permitia progredir, a noite aproximava-se e acabámos por optar por abandonar os dois jipes no deserto e colocar todo o seu conteúdo na única carrinha que se mantinha operativa, a do chefe.

No interior do carro que resistia a prosseguir encontrava-se o chefe a conduzir, eu e os clientes de Ideias Nómadas e na caixa de carga da pickup ia todo o material de acampamento e cozinha, com os três ocupantes da carrinha de apoio empoleirados sobre a rede que envolvia a bagagem e seguros com uma mão nessa rede e com a outra nos prumos de madeira das tendas que atravessavam toda a carga.

Já admirava o chefe mas a partir daí a minha consideração por ele aumentou, pois ele tinha que levar a bom termo, de noite, no profundo deserto e em condições completamente inadequadas, toda aquela gente.

Senti um enorme receio por toda aquela perigosa e inconveniente conjuntura.

No deserto nunca nos devemos locomover num único carro.
Em situação alguma, e muito menos em piso de areia, um carro deve estar tão superlotado e carregado.
É, de todo, de evitar a transposição de dunas à noite e, nas circunstâncias descritas, até mesmo de dia.
Esta progressão tinha ainda um risco acrescido por não haver qualquer pista naquele trajecto.

Fiquei também a apreciar os pneus próprios para areia daquele jipe que, talvez devido ao enorme peso suportado, se moldaram ao piso arenoso com a pressão correcta, avançando sem atascarmos.

Na passagem de uma das dunas Alá estava connosco.

O chefe, como habitualmente e como fez em todas as outras dunas, embalou o jipe começou a subir a pendente com a velocidade necessária, mas algo lhe disse para não a transpor, fez marcha atrás e foi perscrutar como era a
inclinação da pendente contro-lateral, tendo ficado arificado (ali o termo certo não era terrificado), se tivesse atravessado o cume teria caído na vertical da altura de alguns metros, fora de pista, pois ali pista não há, e sem outro carro para prestar ou pedir socorro.

Esta inesperada aventura, graças a Alá, ao chefe e à única boa pickup que nos foi confiada prosseguiu, ocorrendo ainda mais

dois episódios burlescos que vos quero contar.

Um deles foi a passagem em Chingueti, a mais importante antiga cidade da Mauritânia e a actual sexta cidade santa do Islão.

Estava prevista uma visita à cidade que foi substituída, dada a hora já tardia, pela inevitável passagem de carro junto à mesma com a descrição do chefe do que poderíamos ver, caso não tivesse havido tantos problemas que nos fizeram ali chegar já de noite.

O chefe tinha a lição bem estudada e apontava com o dedo para onde teria recaído a nossa visita, descrevia-os e nós com o nosso olhar espreitando o escuro de uma noite sem luar, imaginávamo-los.

Foi uma sensação nova de incapacidade irrisória junto com algum desalento, estávamos em Chingheti, gostávamos de a contemplar, mas para a conhecer só noutra expedição.

O segundo episódio caricato aconteceu perto do final,
após termos dado boleia a um Mauritano, com o seu Mercedes também avariado, que aproveitou a nossa carrinha por achar preferível ser mais um passageiro na parte superior da carga do que permanecer na pista naquela noite de breu, usufruindo nós da noção de completo aproveitamento do espaço que a Toyota nos proporcionava.

Antes de chegar a Atar a pista deixa o maciço de Adrar com pronunciadas descidas que, pela inclinação da pendente e por questões de segurança e tracção, foi asfaltada sendo a única parte deste trajecto que o é.

Foi logo nesta primeira e acentuada descida que o chefe apanhou o segundo grande susto do dia, com o único jipe em boas condições mecânicas a ficar totalmente sem travões, com cinco pessoas no seu interior e quatro sobre a pesada carga, e foi graças à segunda velocidade da caixa de velocidades a transmitir um barulho de forte rotação ao motor para conter a velocidade das rodas o único processo de evitarmos entrar em velocidade uniformemente acelerada.

Finalmente conseguimos chegar a Atar, o chefe por telefone travou-se de razões com a agência rent-a-car e no dia seguinte foi combinado deslocarmo-nos para Akjoust, onde iríamos receber dois bons jipes.

Seria verdade ou viriam aí mais duas azémolas ?

Foi, pois, com enlevo e êxtase que à hora de almoço nos apareceram duas bombas TT.
Um jipe Mitsubichi longo, branquinho, de alta cilindrada para o chefe, e um também topo de gama, africano, um Toyota HDJ 105 com 4.2 c.c. cilindrada, para mim...
Finalmente, bem montados e com os cozinheiros numa nova pickup.

Estória:

O desejo de abalarmos era enorme, mas antes de prosseguirmos tentei bloquear os cubos das rodas dianteiras tirando-os da posição automática, procedimento indicado pelos fabricantes de jipes para quando se conduz permanentemente fora de asfalto, mas o condutor da pickup, ao ver tal procedimento, aparece de imediato e com altos modos diz-me para não o fazer e, como eu insistia, ele acabou com o dilema dizendo que ele é que percebia daquilo pois a vida dele era aquela e era um profissional...

Acatei o recado e partimos, primeiro o chefe, depois eu e no final a pickup carregada com o habitual estendal.

Enfastiados de carros achegados a carroças e num trajecto para Oeste de Akjoust para alcançar a praia onde iríamos acampar, deparámo-nos com uma paisagem desértica de piso duro de infinitas pistas paralelas.

Para vosso melhor entendimento progredíamos em milhões de campos de futebol ou, para compreenderem ainda melhor, aquele poderia ser um espaço de aterragem do Space Shutle e poderia fazê-lo em múltiplas direcções, tal era a dimensão daquele área com piso de dureza térrea.

Fartos de maus carros, conduzindo agora dois "maquinões" naquele espaço de aparente infinita lonjura, e querendo recuperar o tempo perdido, já via o meu chefe lá bem à frente, o meu velocímetro marcava cem e preparava-me para acelerar ainda mais, olhei pelo espelho e verifiquei que a pickup estava consecutivamente a ficar para trás e pensei:

Coitados dos cozinheiros porquanto vamos chegar ao nosso destino com duas horas de avanço em relação a eles, o que será uma vantagem para nós por haver mais tempo para a praia, para o banho, para nos deitarmos na toalha, para tentar arranjar uns peixinhos para o jantar, etc.

Estava um calor q.b. e perguntei ao casal que me acompanhava se preferiam ar condicionado ou vidros abertos.

Com a escolha da segunda opção abri o meu vidro e estiquei-me todo para receber aquela aragem mais fresca e não sei como, mas talvez para dizer qualquer coisa ou para respirar ar mais fresco, abri um pouco a boca.

Eis que sinto entrar um corpo estranho pela boca adentro, ficando-me atravessado na garganta.

Mas de imediato, além da sensação de algo enfiado na garganta, comecei também a apreender que o corpo estranho, tal como eu, se tentava libertar daquela situação, mexia-se e encetei a experimentar surpreendente e incómodo prurido
na oro faringe.

Só podia ser uma mosca, mas que porcaria, engolir mosca nunca, tinha que a cuspir para o chão, mas com um distinto casal no interior do carro o melhor era parar e cuspir para a rua.

Comecei a parar, mas agora já não era só para cuspir, pois as asinhas do bicho, no seu rápido movimento, estavam a provocar-me náuseas e os vómitos foram inevitáveis.

Já estava a travar, travei ainda mais intensamente, o jipe parou, abri a porta rapidamente, debrucei-me para o chão e
Pum.....
E cá está a lei de Murphy a funcionar:

Mesmo no maior dos desertos,se dois jipes se movimentarem a probabilidade de chocarem existe.

A prova estava ali, as leis de Murphy que me deliciam pelo gozo humorístico que contêm pela improbabilidade de se aplicarem, tinham logo que ser comigo que operaram.

Como foi possível tal acontecer?

O causador foi o nosso condutor da pickup, que já não via os seus amigos cozinheiros há algum tempo, vindo com eles no paleio e franca animação e distraído, só se apercebe tardiamente da paragem do meu jipe e, em vez de viraro volante e passar, trava a fundo, bloqueia, vem de rojo e
Pum na traseira do meu jipinho.

A mosca?....
não faço a mínima ideia, ou a engoli ou a libertei e as náuseas foram imediatamente esquecidas tal o assombro vivido..

Claro que o meu veículo só ficou com uma ligeira amolgadela, mas a pickup tinha o guarda lamas encarquilhado, retraído e a envolver a roda e quando o tentámos puxar para a libertar verificámos que o semi eixo também estava partido.

Mais uma pickup semeada no deserto.

E com a viagem novamente estragada.

Mas como de qualquer situação, e até da desgraça, procuro obter algum gozo, encontrá-lo ali até não era difícil.

Senti-o não só ao cogitar de como era possível haver dois carros batidos naquelas circunstâncias e também ao contemplar o condutor da pickup e aí, na percepção do contraste entre a altivez que aquele profissional teve ainda há cinco minutos antes, chegando a ser inconveniente com tais modos de doutoraço, com o confronto de se mostrar agora completamente destroçado, arrasado e atrofiado, sem saber o que lhe sucedeu e porque aconteceu, e de como iria explicar ao seu chefe tal conduta.

Foi também jocoso quando o chefe voltou para trás e divisámos, ao chegar,

as rápidas mutações da sua fácies;

Primeiro assombro (estão parados porquê?)
A seguir céptica (avaria já?)
Depois incrédula (chocaram?)
E por fim colérica (estamos tramados...)

Pausa

Seguida de decidida


Vamos dormir a um hotel.

Vamos para Nouakchot,